Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.

Carlos Drummond de Andrade, in Corpo, RJ, Record, 2002, p.33.

Meu coração, não sei por que, bate feliz…*

João A. Frayze-Pereira **

No coração, a designer Virgínia Pereira Leite projeta o seu coração. Ou melhor, corações , pois são vários.

Com materiais básicos, ela constrói os suportes e define as figuras ,costuradas com fios diversos ou riscadas com carvão nas telas, feitas com juta, puro algodão ou lona suja e pesada, de uso comum em caminhões.

Além disso, ao serem recobertos com parafina e cera de abelha, tais objetos ganham um aspecto envelhecido de sorte que, nos tecidos, as formas parecem arcaicas, numa gama de cores que vai do areia ao ocre e aos terras (…tons do começo do mundo ?), assim como os corações em barro (… alusivos ao primeiro coração humano, miticamente criado ?), transformados em cerâmicas de alta temperatura (… com aparência bruta de artefatos antigos, encontrados em alguma escavação?), suscitam uma ilusão plástica transitória que se desfaz no mesmo instante em que se faz, dada a presença do moderno fio de cobre que, metaforicamente, energiza algumas figuras, assim como as caixas de acrílico industrial que, supostamente, protegem certas peças, aludindo às encontradas em museus de anatomia.

Ora, sabe-se que entre arte e ilusão a relação é intrínseca. Nesse sentido, as alusões sugeridas , do mítico ao científico, permitem-nos supor que essa mostra conta com um rico campo simbólico para a elaboração de uma das mais fortes representações da humanidade.

Mais ainda: emblemas da vida, das paixões, do amor e da dor, do desejo, da bondade e da compaixão, os corações aqui expostos formam uma pequena orquestra que pede aos seus expectadores certo silêncio – aquele tipo de silêncio cerimonioso sem o qual desse estranho conjunto não se pode ter experiência alguma, sobretudo a da escuta da sua e da nossa pulsação.

Nessa exposição discreta, misteriosa, cuja elegância é proporcional às dimensões do espaço ocupado e à simplicidade dos materiais usados, Virgínia toca na complexidade universal que habita os corações.

Lugar originário do ritmo corporal, órgão em que se determina o princípio da percussão sensível a se transformar o gesto primordial como a respiração, o voo dos pássaros, o salto e a dança, o canto e a música, em suma, o coração pulsa no fundo de toda arte cuja felicidade é criar múltiplas formas de expressão , despertando o artista para a comunicação consigo mesmo e com os outros.

*Carinhoso de Pixinguinha
**Psicanalista. Membro da sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Associação Brasileira de Críticos de Arte( ABCA) e da Association Internacionale des Critiques d”art (AICA). Professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós –Graduação em Estética e História da Arte da USP

Quedas Feitas de Voos

Picasso escreveu para Matisse: “Quando um de nós dois morrer, existirão coisas que o outro não poderá dizer a mais ninguém”. Em 2016, Virgínia Leite entrava  em cena e dizia palavras sobre a contradição humana, nossas dores cheias de sonhos e nossos sonhos cheios de dores. Enquanto ela dizia essas palavras, surgiam, no palco, homens e mulheres que tentavam brecá-la, domá-la, silenciá-la. Nada a impediu. O espetáculo tinha uma contínua luz azul e chamava-se: Desmorona-te.

Nunca conheci ninguém que sentisse tanto o chacoalhar da vida. Porque a vida range de tão maravilhosa e de tão tenebrosa ao mesmo tempo, me disse Vivi, sorridente. Quando paramos de flanar pela vida e nos atiramos na selva e queda d’água, finalmente começamos a descobrir o que nos é precioso.

Sua obra é um poema continuo cheio de andorinhas e orangotangos e encontros e vazios e corações e vísceras e isolamentos e céus azuis.Vivi tem o olhar mais jovem e livre que já conheci. Olhar que brilha para o erotismo como brilha para a morte. Erotismo como o sentido efêmero e interminável do encontro da vida antes de desvanecer.

Nunca me senti tão acompanhado por alguém, falando sobre solidão.

João Paulo Lorenzon